domingo, 24 de agosto de 2014

Os podres do nosso lixo

Os podres do nosso lixo
Líder na produção de resíduos per capita no país e sem aterros sanitários, Brasília ainda tenta se livrar do atraso nesse setor
21.ago.2014 17:54:21 | por Lilian Tahan e Paulo Lannes
Lixão da Estrutural: o maior depósito a céu aberto da América Latina (Foto: Roberto Castro)


É comum usarmos mais tempo para acompanhar os últimos lançamentos tecnológicos do que para debater a destinação dos nossos adorados bens de consumo, que se tornaram imprescindíveis na vida moderna. Natural. Queremos olhar para a frente, para o novo, e pensar no velho, no que já não nos serve mais, parece não fazer sentido. Apesar de indigesto, remexer e discutir nossas sobras é mais que um desafio, trata-se de uma necessidade, especialmente no Distrito Federal, endereço do maior lixão a céu aberto do país e recordista nacional na produção de resíduos sólidos urbanos por pessoa.

Vamos ao exemplo do tântalo. Durante décadas, o mineral usado como matéria-prima na confecção de celulares e smartphones era encontrado em abundância na natureza. Os especialistas preveem que em vinte anos as únicas jazidas desse metal serão os lixões e os aterros sanitários, para onde vão os telefones rejeitados. Isso também deve ocorrer com a prata, o cobre e o índio — presentes na tela plana de TVs e computadores. Quando esses minerais voltam para o meio ambiente em forma de resíduos não processados, têm o poder devastador de contaminar lençóis freáticos e espalhar doenças graves, como o câncer.

Um completo estudo sobre o tema foi realizado recentemente pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Segundo o levantamento, que reúne dados de 2013, cada brasiliense gera por dia 1,5 quilo de lixo. É quase o triplo do índice de Santa Catarina, o dobro do de Minas Gerais, 22% a mais que no Rio de Janeiro e 15% acima da quantidade por habitante do Estado de São Paulo — a média nacional é de 1,04 quilo. Tem mais. Nos reduzidos limites geográficos do DF, são produzidas 4 326 toneladas de lixo por dia, número superior ao dos estados de Mato Grosso, Espírito Santo, Rio Grande do Norte e Maranhão — todos com população maior do que a candanga.
Apesar de a capital ostentar a liderança na fabricação de lixo, ainda está longe de seguir a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Neste mês, Brasília passou oficialmente a descumprir várias normas que estabelecem práticas sustentáveis na gestão do lixo. Aprovada em 2 de agosto de 2010, a Lei Federal 12305 prevê, entre outras medidas, que as cidades tinham quatro anos para acabar com os lixões a céu aberto. Mas o que se vê a 10 quilômetros do Congresso Nacional, onde essa legislação foi debatida durante duas décadas, é uma imagem desalentadora. Urubus e catadores ainda lutam pela sobrevivência nas montanhas de sobras descartadas pela população com a maior renda per capita do país. “Eles vivem em situação subumana. Muitos se machucam, adoecem e até morrem. São invisíveis para a sociedade e para o Estado”, afirma o procurador Valdir Pereira da Silva. Há um ano e meio ele conduz pelo Ministério Público do Trabalho um inquérito civil que investiga a atuação de 1 200 catadores no lixão da Estrutural, o maior da América Latina. Segundo o procurador, apenas em 2014 três pessoas perderam a vida nesse cenário. Foram vítimas dos perigos de lidar diretamente com os resíduos, sem acesso a nenhuma infraestrutura de apoio.

Pelas características de país-continente e de potência em desenvolvimento, o Brasil é a terceira nação do planeta que mais acumula lixo. São 189,2 toneladas de sobras por dia. Perde só para a China e os Estados Unidos. Inversamente proporcional às montanhas de restos, no entanto, está a destinação correta desse material. O Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, elaborado pela Abrelpe, mostra que 41,7% do que é jogado fora no país não passa por um processamento adequado, algo equivalente a 79 000 toneladas por dia. É como se, a cada 24 horas, 158 000 contêineres abarrotados com todo tipo de lixo fossem despejados em lugares impróprios.

Se a situação do Brasil é alarmante, a da região que abraça sua capital está ainda pior. No Centro-Oeste, para cada quilo de lixo gerado, 700 gramas vão para lixões. Em Brasília, 65,8% de tudo o que é rejeitado toma um rumo descabido do ponto de vista da sustentabilidade. “Na capital do país, que deveria dar o exemplo, ainda faltatoda uma rede de infraestrutura por parte do governo, além de mais consciência ambiental da sociedade”, considera o presidente da Abrelpe, Carlos Silva Filho. Ele explica que o lixo é um dos indicadores de prosperidade. Quanto mais poder aquisitivo tiver a população, maior será o consumo e, consequentemente, a quantidade de resíduos produzidos. Silva Filho alerta, porém, que essa lógica não justifica a má administração dos rejeitos. “Se a sociedade cresce economicamente, precisa estar pronta para lidar com seu lixo.”


Entre 8 e 11 de setembro, haverá uma boa oportunidade de olhar exemplos de fora durante o Congresso Mundial de Resíduos Sólidos da Iswa (International Solid Waste Association). O evento, considerado o maior fórum de discussão sobre o tema, ocorrerá pela primeira vez no Brasil, em São Paulo. Durante os debates, representantes de 56 países vão expor experiências bem-sucedidas no tratamento das sobras. A comitiva de Copenhague, por exemplo, apresentará uma referência de como aumentar o potencial do lixo. Na capital da Dinamarca, parte da energia elétrica consumida pela população vem dos resíduos. Lá, o índice de reciclagem é de 50%, um dos maiores do mundo. Em Brasília, que engatinha na coleta seletiva, iniciada há seis meses, esse porcentual chegou a 8,3%. Nesse congresso mundial em São Paulo, os participantes também poderão saber como os austríacos garimparam mais ouro no lixo do que nas minas. Terão a chance ainda de beber na fonte dos peruanos, que, mesmo com uma realidade econômica menos favorável do que a da Áustria, conseguiram aumentar a receita do setor de resíduos, evitando o desperdício e transformando restos em gás natural. No caso da italiana Milão, seus gestores anunciam explicações sobre como converter matéria orgânica em fertilizante para praças e parques urbanos.

Infelizmente, os bons exemplos europeus e até de vizinhos da América Latina tratam de estágios distantes da realidade local. Aqui há, primeiro, que seguir itens mais básicos da cartilha sobre o destino correto de resíduos sólidos. Fechar o lixão da Estrutural e passar a operar o aterro sanitário é o mais urgente deles. Mesmo essa providência primária parece improvável a curto prazo. As obras do aterro de Samambaia estão inconclusas e não há data definida para inaugurá-lo. No lugar, haverá três valas de 5 metros impermeabilizadas e ligadas a um duto. Essa tubulação levará o chorume — líquido que se forma pela decomposição de matéria orgânica — para uma estação de tratamento. Diretor-geral do Serviço de Limpeza Urbana (SLU) do DF, Gastão Ramos reconhece que a estrutura já deveria ter sido entregue, mas divide a responsabilidade pelo atraso com gestões passadas e outros órgãos envolvidos na operação, como o Tribunal de Contas, que tem um histórico de embargos nos processos que envolvem o lixo. Ramos lembra que, durante um longo período, a administração dos resíduos no DF foi prejudicada por disputas políticas e de interesse econômico. Entre 2007 e 2010, o governo terceirizou essa tarefa a empresas mantidas por meio de contratos emergenciais, sem o expediente da concorrência pública. Essa rotina do improviso, no melhor dos cenários, facilitou o desperdício e, no pior, favoreceu o sobrepreço de serviços bancados com o dinheiro da sociedade. Hoje, cada família brasiliense desembolsa, em média, 160 reais por ano para o financiamento da limpeza pública, segundo estimativa da Secretaria de Fazenda.

Se o custo individual para os cidadãos parece não ser tão alto, a soma dos valores pagos representa uma fatia milionária no bolo do orçamento. Por ano, o GDF utiliza 390 milhões de reais para administrar seus resíduos. O valor já foi mais alto. “Cortamos 47% dos gastos administrativos. Mas ainda trabalhamos para enxugar essa estrutura e otimizar os serviços”, diz o diretor-geral do SLU. Ele afirma que, em sua gestão, tomou medidas saneadoras, como a abertura de 173 processos administrativos disciplinares. As ações internas resultaram na demissão de seis gestores a bem do serviço público. Em um futuro breve, o SLU programa pôr em operação quatro centros de triagem para acolher os catadores, hoje organizados em 32 cooperativas. Esses postos prometem oferecer espaço apropriado, máquinas de pesagem dos materiais recicláveis, refeitório e vestiário para os trabalhadores. “A gente não quer mais saber de planta que fica bonita na foto. Já passou da hora estabelecida por lei para o projeto existir na prática”, cobra Ronei Alves da Silva, que representa o Movimento Nacional de Catadores no DF.

Ao coro de Silva se une o deputado distrital Joe Valle (PSB). Ele coordena a Frente Parlamentar de Meio Ambiente na Câmara Legislativa e é autor da Política Distrital de Resíduos Sólidos. Aprovada na Casa, a lei local foi vetada pelo governador no último dia 15. “Não podemos mais evitar uma legislação que freia os desmandos do passado e põe a cidade no caminho da gestão politicamente correta do lixo”, diz Valle. VEJA BRASÍLIA teve acesso a uma auditoria inédita do Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) que discrimina, na ponta do lápis, esses desmandos lembrados pelo político. A investigação é sobre a razoabilidade dos preços praticados em contratações emergenciais entre 2006 e 2012. Essa fiscalização dos auditores aponta superfaturamento em quatro etapas do processamento do lixo, desde a varrição de rua até o transporte dos resíduos. Trata-se de um prejuízo de 91,9 milhões de reais, atribuído às seis empresas que prestavam serviço para o SLU: Artec, Nely Transportes, Valor Ambiental, Engetécnica, Delta — que, em 2012, se envolveu em um escândalo nacional de fraudes e propinas — e Qualix, hoje em recuperação judicial. Atualmente, a maior fatia do serviço terceirizado pelo SLU está nas mãos da Sustentare, mantenedora do mesmo CNPJ da Qualix. “Hoje, nosso corpo diretivo é totalmente diferente”, afirma a assessoria de imprensa que representa a Sustentare.

A partir do relatório dos auditores, os conselheiros do TCDF determinaram ao SLU uma série de recomendações técnicas, como a fiscalização regular dos trabalhos para evitar novos episódios de desperdício e de superfaturamento. Uma sinalização clara de que, para se livrar do atraso e promover uma revolução do lixo na capital da República, governo e sociedade não poderão varrer essa sujeira para debaixo do tapete. 

http://vejabrasil.abril.com.br/brasilia/materia/os-podres-do-nosso-lixo-3100

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