domingo, 11 de maio de 2014

Voltamos ao Velho Oeste?

A América Latina e, em específico, o Brasil vive uma onda "olho por olho, dente por dente". Nos últimos meses, vemos ações de brutalidade realizadas por "cidadãos de bem" contra a marginalidade. 

O caso do jovem infrator no Rio espancado e amarrado ao poste, no mês de março deste ano, começou a revelar o sentimento de justiça "custe o que custar". Muitos aplaudiram o feito, jornalistas exaltaram os "justiceiros" e pouquíssimos tentavam entender ou explicar o porquê de tal ação parecer algo tão natural. 

O fato é que, de lá pra cá (ou mesmo antes), o povo brasileiro, quase que na sua totalidade, começou a ficar sedento por fazer justiça com as próprias mãos. Quem é responsável por este fenômeno? O Estado pouco interventor? A mídia "datanesca"? Ou o próprio povo desacreditado em tudo? 

Mas o último caso, o de Guarujá, fez o sinal vermelho acender. Vítima e inocente, Fabiane Maria de Jesus foi espancada e morta por populares. A acusação: ser sequestradora de crianças. O acusador: as redes sociais e a ignorância do povo.  

Cenas do vídeo que mostra o linchamento de Fabiane Maria de Jesus, no Guarujá


Certo é que, em geral, as vítimas de linchamento são pobres e diríamos, vítimas de seus semelhantes.

Para nossos debates, posto três textos sobre a temática. O primeiro artigo foi escrito por Luís Francisco Carvalho Filho, advogado e colunista do jornal Folha de S.Paulo. Ele faz um breve relato histórico e uma reflexão filosófica sobre os linchamentos no Brasil e no mundo. Aponta a responsabilidade do Estado e de como o desejo coletivo sobrepõe a vontade e a ética do indivíduo.

O Segundo texto é de Jean Wyllys, ex-BBB e Deputado Federal. Mais focado no Brasil, o autor aponta a herança histórica de quando éramos colônia, o triste legado dos tempos de Ditadura, a ineficiência de programas educacionais durante o governo do Lula e a própria mídia de massas como co-responsáveis pelos atos de "justiçamento".

O último texto, da BBC, traz à tona a onda de violência que atinge também o nosso vizinho, a Argentina. A abordagem do artigo deixa claro, mais uma vez, o papel da grande mídia como agente de desesperança, em que o povo se motiva para vandalizar e partir para o tempo do "Velho Oste". 

Boa Leitura...


VINGANÇA PRIVADA
Falência do Estado não explica fenômeno dos linchamentos
Por Luís Francisco Carvalho Filho publicado em 10 de maio de 2014.
Em 1879, em Itu, multidão enfurecida arranca Nazário da prisão, "arrasta-o pelas ruas e lincha-o sem hesitação e piedade", conta o historiador Xavier da Veiga no final do século 19. O escravo matara a machadadas um ex-deputado, duas filhas e mais duas pessoas que com ele moravam.
O verbo "linchar", proveniente da língua inglesa (lei de Lynch, de origem controvertida, mas relacionada a execuções sumárias nos Estados Unidos da América), já fazia parte de nosso vocabulário.
A biografia autorizada de Lula, "O Filho do Brasil", revela que, nos anos 60, o jovem sindicalista presencia o linchamento de alguém que alvejara um grevista: "Eu achava que o pessoal estava fazendo justiça".
Esta semana, no Guarujá, balneário paulista com alto índice de criminalidade, um episódio estranho, que mistura boato, redes sociais e suposto ritual de magia negra, culmina com espancamento e morte de mulher inocente.
Uma onda de linchamentos também afeta a Argentina. A presidente Cristina Kirchner chegou a se pronunciar no começo de abril, depois de dez casos em dez dias, pondo a culpa em "políticos mentirosos e sem escrúpulos".
O Núcleo de Estudos da Violência da USP contabiliza 1.179 ocorrências no Brasil entre 1980 e 2006, com mortes, ferimentos, fugas e intervenções policiais que evitaram o pior.
O sociólogo José de Souza Martins tem ensaios primorosos sobre o tema. Documentou mais de 2 mil casos, e, em entrevista concedida em 2008, estimava que, em 50 anos, cerca de 500 mil brasileiros participaram de tentativas ou barbáries consumadas. Fala em três a quatro linchamentos por semana. Aponta as periferias de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador como cenários principais.

Por que lincham?
Se nos EUA — onde a prática foi extirpada depois de uma história dramática de acontecimentos e de política de Estado desenvolvida para o problema — as questões da supremacia racial e da moral puritana estavam em pauta, no Brasil o linchamento tem caráter essencialmente punitivo. É voltado contra pessoas envolvidas em um delito, mais ou menos grave, seguido de "julgamento" instantâneo, informal e popular.
É importante não confundir linchadores com justiceiros, linchamento (espontâneo) com chacina (premeditada). A falência do Estado e sua incapacidade de promover, com eficácia, a expropriação da vingança privada podem até aparecer como ingredientes em determinadas ocasiões, mas não explicam o fenômeno.
O linchamento é reação súbita, anônima, eufórica, irracional, desorganizada e ritualística de gente que se sente ameaçada. A vontade coletiva se impõe à vontade individual. Sua raiz psicológica lembra, de certa maneira, a do genocídio. A turba identifica um inimigo intrinsecamente mau, conforme o imaginário, e comete atrocidades infinitas.
Martins cita a precariedade da construção do nosso ambiente urbano, de uma "população dividida entre a desmoralização completa e a desesperada necessidade de afirmação de valores mais tradicionais da família e da vizinhança". As cidades recebem, mas não acolhem.
O caso do Guarujá mostra que a internet potencializa a reação histérica de massas. A repulsa eventual e a punição de um ou outro envolvido não são capazes de conter a epidemia.
Luís Francisco Carvalho Filho é advogado e colunista do jornal Folha de S.Paulo.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luisfranciscocarvalhofilho/2014/05/1452297-linchamentos.shtml


Uma reflexão sobre o linchamento do Guarujá
Se já estivesse em vigor a lei que inclui o estudo e a valorização da herança cultural africana nas escolas, talvez o linchamento não tivesse ocorrido. 
Por Jean Wyllys publicado 06/05/2014 22:13, última modificação 06/05/2014 22:31
Não sou membro da Comissão de de Segurança Publica e de Combate ao Crime Organizado, mas, como deputado do PSOL - partido que apresentou à Procuradoria Geral da República uma representação contra a jornalista Rachel Sheherezade quando esta apoiou publicamente o linchamento como resposta à sensação de insegurança nas grandes cidades - e como parlamentar que recentemente aprovou requerimento na Comissão de Direitos Humanos e Minorias para discutir a situação da violência urbana no Rio de Janeiro, além de (e antes de qualquer coisa) como cidadão que se encontra estarrecido com os recentes casos de linchamento no país, não pude deixar de participar da audiência pública que nesta terça-feira à tarde debateu o tema “justiça com as próprias mãos”.
Um dos pontos que achei importante levantar em minha intervenção foi o de que, se não podemos tratar do racismo que hoje perpassa as relações sociais no Brasil sem levar em conta a escravidão que, por séculos, moveu a economia do Brasil; se não podemos caracterizar as elites de hoje sem pensarmos na aristocracia de outrora - e ambas têm a perspectiva dos privilégios e não do direito -, também não pormos tratar dos recentes linchamentos sem levar em conta nossa história mais recente.
As duas décadas da ditadura militar foram tempo suficiente para criar uma cultura na qual certas pessoas são desprovidas de dignidade a ponto de serem vítimas de um crime de lesa-humanidade como a tortura, que continua sendo praticada em delegacias, prisões e nas comunidades mais pobres onde a polícia tem uma presença maior ou onde vigoram estados paralelos como o tráfico e a milícia. Quando pensarmos no "justiçamento" hoje praticado no Brasil, não podemos nos esquecer no modelo de desenvolvimento implantado pela ditadura militar, que provocou migração de pessoas do campo para as grandes cidades, criando as grandes periferias urbanas e todos os problemas que elas enfrentam.
Em que pesem os avanços sociais inegáveis da chamada "era Lula", o Estado ainda não pagou o débito em educação, saúde, moradia de qualidade, acesso à cultura e à justiça com esse contingente. Sobretudo o débito com a educação de qualidade, que, junto à cultura, tem papel central na construção da ‘vida com pensamento’ e do processo civilizatório. Podemos até ter massificado a educação, mas a qualidade da educação oferecida ainda é baixa. Só uma Educação de qualidade e um acesso amplo a equipamentos de cultura, esporte e lazer – algo a que a grande maioria da população não tem acesso - podem produzir a cultura do respeito à vida e à diversidade humanas.
Não se pode pensar nos linchamentos sem pensar em como a ausência do Estado permitiu, nas periferias, do início do anos 80 até os anos 90, a emergência dos chamados “embriões de Estado”: o narcotráfico e as milícias, que também promovem “justiçamento” à margem do Estado Democrático de Direito e no vácuo da legalidade.
O caldeirão cultural de violências decorrentes dessa negligência institucional também tem sua parcela de responsabilidade nesses atos de justiçamento.
Qualquer um de nós pode ser vítima de linchamento, mas, na prática, as pessoas mais pobres estão mais vulneráveis a ele porque, historicamente, foram alijadas de direitos e descartadas da comunidade de direitos por do ponto discursos que as desqualificam como humanos. Não há exclusão da comunidade de direito sem, antes, haver desqualificação das pessoas excluídas. 
Os telejornais e, antes, a mídia impressa desqualificam as populações mais pobres, associando-as à criminalidade e à violência urbana - o que justifica a presença apenas da polícia como braço do Estado nessas comunidades. Se estas pessoas são desqualificadas e expulsas da comunidades de direitos, a polícia, ainda que saindo dessa própria comunidade, não as respeitará como sujeitos. Isso fica muito claro quando lembramos dos casos Cláudia, arrastada em um carro da polícia, Amarildo, ambos ocorridos no estado do Rio de Janeiro.
Nós, parlamentares, juramos proteger os princípios da Constituição Cidadã no dia da nossa posse. Mas, a despeito deste juramento, muitos colegas levantam as bandeiras “bandido bom é bandido morto” e “direitos humanos são direitos de bandidos” com uma desonestidade intelectual e falta de discernimento - e isso, de alguma forma, tem relação com os linchamentos.
Algo que não podemos desprezar no linchamento do Guarujá, por exemplo, é o fato de a vítima ter sido, antes, alvo de uma difamação nas redes sociais digitais que a transformara em sequestradora de crianças para sacrifício em rituais de "magia negra". Ora, além de a expressão "magia negra" ter uma forte conotação racista, já que cunhada pelos colonizadores brancos e cristãos para designar as práticas religiosas dos negros escravos, hoje ela é confundida no senso comum com as próprias religiões de matriz africana, graças à difamação e perseguição que estas sofrem por parte de muitos pastores e obreiros neopentecostais em cultos e telecultos. Ou seja, está claro que os linchamentos têm relação com a promoção da ignorância e com a decorrente prática da intolerância.
Se o governo federal já tivesse, por meio de uma articulação entre Ministério da Educação e das secretarias de Promoção da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, implementado a Lei 10.639 (que inclui o estudo e a valorização da herança cultural africana no currículo escolar), talvez - talvez - o linchamento do Guarujá não tivesse ocorrido. Se os percentuais do orçamento para educação e a cultura fossem maiores que o atuais (pífios!) e empregados em políticas públicas de qualidade nos três níveis da federação, talvez um contigente maior soubesse distinguir uma difamação nas redes sociais de uma notícia apurada ou denúncia fundamentada e não saísse espancando pessoas por causa de boatos que despertam seus preconceitos.
Não quero dizer, com isso, que a culpa seja só do governo federal. Eu seria desonesto e injusto se o dissesse. Os governos estaduais e municipais também são culpados, sobretudo porque gangrenados por esquemas de corrupção que desviam os recursos da educação e da cultura para enriquecimento privado. Como expliquei acima, o poder Legislativo também tem sua parcela de culpa; parte da mídia também (uma grande parcela!) e, claro, o poder Judiciário, que ainda funciona de maneira seletiva e exclui os mais pobres do acesso à justiça e à mediação de conflitos.
Mas jamais nos esqueçamos de que governos, poderes, mídia e instruções são pessoas; e de que, em última instância, colocar-se contra "justiçamentos" e linchamentos é um questão individual. Que o defensor e praticante do linchamento consiga, num lampejo de lucidez, imaginar que, dado esse caldeirão de ignorância e ódio, a próxima vítima pode ser ele mesmo. E aí?
http://www.cartacapital.com.br/politica/ainda-os-linchamentos-3650.html


Uma série de linchamentos em várias partes do país está preocupando o governo da Argentina e levou a presidente, Cristina Kirchner, a fazer uma referência ao problema em um pronunciamento.
Por Veronica SminkDa B BC Mundo, na Argentina Atualizado em  3 de abril, 2014 - 08:05 (Brasília) 11:05 GMT


Nos últimos dez dias, a imprensa do país relatou pelo menos dez casos. Em algumas ocasiões, os alvos dos linchamentos ficaram em estado grave e pelo menos um resultou em morte.
"Precisamos de olhares e vozes que tragam tranquilidade, não de vozes que tragam desejos de vingança, de luta, de ódio, isto é ruim", disse Kirchner, fazendo uma referência indireta aos incidentes.
A presidente argentina responsabilizou "políticos mentirosos e sem escrúpulos" por incitar a violência.
"A violência gera violência, que se espiraliza", disse Kirchner.
Sergio Massa, prefeito de Tigre, líder do partido peronista Frente Renovador e um dos principais opositores do governo, acusou as autoridades argentinas de serem responsáveis pelos linchamentos.
"Estas situações ocorrem porque há um Estado ausente e a sociedade não quer conviver mais com a impunidade", disse.

"As pessoas precisam que o governo garanta o Estado de Direito e um sistema de sanções que reprima as condutas à margem da lei", acrescentou Massa, provável candidato à Presidência em 2015, quando chega ao fim mandato de Kirchner.

Insegurança
As afirmações de Massa refletem a frustração que toma conta de grande parte da sociedade argentina devido a uma onda de roubos violentos o país.
Não há estatísticas oficiais recentes, mas, nas últimas semanas, até políticos do governo admitiram que há um problema de insegurança no país, algo que até este ano era negado pela Casa Rosada.
Agora o debate é sobre como responder à preocupação dos argentinos com a violência.
Para alguns, os casos de linchamento são casos de "justiça com as próprias mãos". Para outros, mostram uma preocupante degradação social.
"Voltamos ao Velho Oeste", disse Alfredo, porteiro de um prédio que, há alguns dias, defendeu um homem suspeito de ter cometido um roubo e que estava sendo golpeado por vizinhos no bairro de Palermo em Buenos Aires.
"Se não tivesse protegido (o suspeito), o teriam matado. Estavam dando pancadas na cabeça, a intenção era matar", disse o porteiro ao canal de televisão argentino Todo Notícias.
No dia 22 de março, David Moreira, um jovem de 18 anos, morreu por causa dos golpes recebidos em meio a uma multidão no bairro da terceira maior cidade de Argentina, Rosário, na província de Santa Fé.
Moreira foi capturado por vizinhos depois de supostamente ter tentado roubar a carteira de uma mulher que carregava o filho no colo.
Desde a morte de Moreira, foram divulgados pelo menos nove casos de linchamentos em Santa Fé, Buenos Aires, Rio Negro, Córdoba e La Rioja. Apesar de não terem resultado em mortes, alguns resultaram em ferimentos graves para as vítimas.
Durante o fim de semana, também foi noticiado um outro caso em Rosário no qual dois homens foram golpeados por vizinhos depois de serem confundidos com ladrões.

Imprensa e responsabilidade
Alguns especulam que a grande atenção que estes casos receberam poderia estar estimulando a violência e até gerando um efeito de contágio.
Outros analistas responsabilizam a imprensa de aumentar o problema de insegurança no país.
"Se pode falar de insegurança, da impunidade, da inflação... mas como cidadão não gosto que o único (assunto) que se fale em meu país seja este", disse no domingo passado em um programa de televisão popular um dos atores mais famosos da Argentina, Guillermo Francella.
O comediante e ator do filme ganhador do Oscar O Segredo de Seus Olhos continuou afirmando que "vou à academia e faço ginástica assistindo televisão e, em uma hora, não há uma notícia boa sobre meu país... E não acredito que meu país seja assim, todo ruim".
A opinião do ator coincide com a da presidente Cristina Kirchner que, frequentemente, acusa os principais meios de comunicação do país de fomentar uma "cadeia nacional de ódio e desânimo".

Analistas de segurança consultados pela BBC afirmam que, apesar de a televisão ter um papel nesta onda de medo, há também no país uma sensação de impunidade.
"Desde o começo do ano, uma pessoa foi assassinada a cada 27 horas na província de Buenos Aires e uma pessoa morreu por dia em Rosário", disse Luis Alberto Somoza, especialista em políticas de segurança e professor do Instituto Universitário da Polícia Federal Argentina (Iupfa).
"As pessoas sabem que a capacidade punitiva do Estado foi perdida. (...) O delinquente entra e sai pela mesma porta porque há toda uma corrente benévola quanto à aplicação do direito penal, e o delinquente não teme o castigo. Hoje, o delinquente não tem medo de sair e cometer crimes porque tem certeza de que não vai acontecer nada", afirmou.

 http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/04/140402_argentina_linchamentos_fn.shtml

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